Não sei se Elon Musk é humano ou reptiliano. Mas sei que há dois meses Musk afirmou: “Só a AfD [Alternative für Deutschland] pode salvar a Alemanha”.
A frase pode ser traduzida como “só um partido de extrema direita com inspiração fascista pode salvar o país onde um outro partido de extrema direita e fascista cometeu o maior genocídio da história”.
Aliás, o próprio termo genocídio foi cunhado após a Segunda Guerra Mundial, porque não havia em léxico algum no mundo inteiro palavra que abarcasse o extermínio de 6 milhões de judeus pelos nazistas. Outras minorias também foram perseguidas e mortas, como negros, gays e os romani (que costumamos chamar de ciganos, no Brasil) pelo regime que mergulhou a Alemanha na mais profunda crise poítica, econônica e moral.
No ano passado, um dos líderes da AfD, Björn Höcke, foi a julgamento por usar o slogan “Tudo pela Alemanha” (“Alles für Deutschland”), proibido no país. Eram as palavras de ordem dos membros da SA, os terríveis camisas pardas, que, no período da ascensão de Hitler, início da década de 1930, se tornaram famosos pela violência contra a população marginalizada, de bêbados a andarilhos, além inimigos políticos, como os comunistas e – claro – judeus, apenas por existirem e serem judeus.
A escala industrial da segregação e aniquilação de cidadãos pelo Estado torna o método nazista singular. Nunca, antes ou depois o fascismo se manifestou com a mesma magnitude. No entanto, o ideário do regime hitlerista inclui características comuns a outras versões do fascismo, entre elas o nacionalismo, a adoção de uma estética que ajude a reforçar a identidade de grupo e o culto ao passado.
Voltando a Musk, é nesse último aspecto que ele e a AfD enxergam a salvação, o retorno da Alemanha a um momento idealizado, livre de empecilhos à sua harmonia e prosperidade (pouco importa que os empecilhos sejam pessoas e o modo de removê-los inclua a transgressão aos direitos humanos).
A Liga Antidifamação, ou Anti Defamation League – ADL (não confundir abreviaturas), alerta para os perigos que a AfD representa, pela adoção de slogans nazistas, banalização do Holocausto, promessas de deportação de alemães de origem não germânica (imigrantes turcos, por exemplo), islamofobia, entre outras medidas que deixariam Adolf orgulhoso.
Não sei se Elon Musk fez de fato uma saudação nazista, durante a posse de Donald Trump (já volto a esse assunto). Só sei que, após a repercussão altamente negativa, ele dobrou a aposta e fez piada no X, citando Himmler e Goebbels, dois dos principais líderes nazistas.
Em resposta, Jonathan Greenblatt, presidente da ADL, organização centenária que monitora casos de anitssemitismo e outras formas de supremacismo branco, publicou também no X: “Já dissemos isso centenas de vezes e diremos novamente: o Holocausto foi um evento particularmente maligno, e é inapropriado e ofensivo menosprezá-lo”.
Até agora, como era de se esperar, nada de Musk voltar atrás.
Se Elon Musk realizou mesmo a saudação nazista naquele dia, ninguém sabe. Não há como saber.
Em caso afirmativo, ele o teria feito como um “apito de cachorro”, mensagem política cifrada, que pode ser decodificada por um certo grupo, mas entre os demais não é reconhecida ou causa confusão.
A expressão remete ao fato de cachorros serem capazes de ouvir uma frequência que não pode ser escutada por humanos. Recorrer a esses signos em público manda um recado para neonazistas e outros membros da extrema direita, como quem diz “Estamos no poder”.
Outro exemplo dessa forma de comunicação é o brinde com copo de leite, porque teoricamente os arianos são capazes de digerir o líquido quando comparados a indivíduos de outras etnias, ou o “Ok” feito com a mão. Parece loucura – e é feito para isso –, mas o gesto corriqueiro passou a ter o novo significado, porque também é possível ver entre os dedos um w e um p, iniciais de “white power”.
Para embaralhar mais as cartas, Elon Musk já se posicionou contra Kenye West, antissemita contumaz e à moda antiga, do tipo que dispensa códigos para insultar judeus. Musk também visitou Israel após o massacre perpetrado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 e foi solidário às famílias dos reféns desaparecidos.
Tudo o que sei que Elon Musk já disse sobre minorias vulneráveis até aqui é o suficiente para moldar a percepção negativa que tenho dele, com ou sem Sieg Heil.
O que pouca gente admite, porém, é que o repúdio a Musk na última semana não vem exatamente de uma suposta saudação nazista, mas da polarização política no Brasil. Por mais que tenha tido repercussão internacional, no nosso fla-flu de todo dia, o gesto teria virado mais uma prova do bem contra o mal. Por isso a esquerda brasileira condena o braço estendido do Departamento de Eficiência Governamental de Trump.
Aliás, sobre o governo de que Musk faz parte, não é preciso memória excepcional para lembrar que os supremacistas brancos Proud Boys têm a simpatia do presidente, o qual, de presente em sua posse, concedeu indulto a um dos líderes do grupo, recém-saído da prisão.
Quando outros atores proeminentes do campo político oposto banalizam o Holocausto, a mesma esquerda se cala, enquanto a direita acusa. Outro exemplo dessa segunda dinâmica é a infinidade de imagens de manifestantes anti-Israel em marcha pela Europa ou em universidades de ponta nos EUA reproduzindo, sem mistério e apito de cachorro, a saudação nazista. De novo – e para minha tristeza enquanto progressista – silêncio de um lado, barulho do outro.
Quem dera fossem valores universais o que nos unisse no repúdio ao nazismo, sua simbologia e legado. Mas é só polarização e luta por likes nas redes sociais.