Sabrina Abreu
Jornalista e escritora, diretora de comunicação e cultura da ONG educacional StandWithUS Brasil
[RESUMO] Autora afirma que crítica de “Curb Your Enthusiasm” publicada na Folha incorre no estereótipo antissemita da riqueza judaica em descrição de cena do primeiro episódio da 11ª temporada da série. Uso de caricaturas que associam judeus à ganância e à avareza causam preocupação em quem está atento à perseguição que historicamente o grupo sofre, diz.
Em recente crítica da 11ª temporada de “Curb Your Enthusiasm” publicada na Folha, a autora Teté Ribeiro repassa os principais acontecimentos do primeiro episódio da série da HBO, em que um homem tenta roubar a casa de Larry David e acaba afogado na piscina.
Em sua descrição, Ribeiro não se nega ao uso de spoilers, tampouco abre mão de um estereótipo antissemita. “O irmão do ladrão morto percebe a oportunidade de extorquir o judeu rico”, escreve.
O estranhamento provocado não é tanto pelo uso de “judeu”, completamente dispensável nesse contexto, mas pelo fato de, desde que foi publicada, em 28 de outubro, a crítica não ter recebido reclamações, como recentemente ocorreu após a circulação de artigos que tocavam em pontos sensíveis para minorias, como a escravidão no Brasil para negros ou a gordofobia, especialmente para mulheres.
Talvez a ausência de réplicas e tréplicas em torno desse estereótipo da riqueza judaica se justifique por sua aparição em uma crítica de série de TV a cabo, em vez de em artigos de opinião, que chegam a ser listados no site do jornal entre os conteúdos mais acessados pelo leitor. Pode ser também que, de tão arraigado, tal preconceito nem sequer suscite debates por quase chegar ao ponto do consenso —mas não deveria.
A arte e a indústria do entretenimento, assim como a crítica profissional feita de seus produtos culturais, podem servir como vetor de preconceitos ou ajudar a mitigá-los.
Nesta semana, o Royal Court Theatre de Londres se desculpou depois de ser acusado de antissemitismo por ter colocado um nome judaico em um personagem inspirado no empreendedor bilionário Elon Musk, na peça “Rare Earth Mettle”, de Al Smith. A alteração do nome, cuja escolha a princípio foi atribuída a “preconceitos inconscientes”, foi anunciada.
Musk, diretor-presidente da SpaceX e da Tesla, não é judeu, mas sua posição de homem mais rico do mundo serviu de motivo para a associação irrefletida.
Poderia ser uma atribuição inofensiva caso a ideia do judeu rico, que se conecta profundamente à teoria conspiratória da dominação judaica mundial, não tivesse servido de combustível para a perseguição e a violência desde séculos atrás.
De acordo com a Liga Antidifamação (ADL, na sigla em inglês), entidade que monitora manifestações antissemitas no mundo, a ideia do judeu ganancioso e rico faz com que indivíduos que são parte de uma minoria “sejam vistos como implacáveis na busca de riqueza e também como avarentos, determinados a não deixar nenhum dinheiro escapar de suas mãos”.
Também supõe “que eles exerçam controle sobre os sistemas financeiros mundiais, mas também sejam acusados de enganar regularmente amigos e vizinhos para ganhar dinheiro”.
Caricaturas de judeus gananciosos foram usadas como parte da propaganda nazista e fascista que visava desumanizar esse grupo, na Alemanha e na Itália antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Em uma gravura de 1944, banqueiros judeus eram retratados segurando sacos de dinheiro e passando felizes por entre corpos de soldados italianos mortos em combate.
O estereótipo, contudo, não surgiu com a guerra nem desapareceu depois dela. Em agosto deste ano, panfletos com os dizeres “Judeus acumuladores compulsivos de ouro diamantes e dólares” (sic) foram espalhados em um condomínio residencial do Rio de Janeiro.
Em 2020 e em 2019, o Carnaval da cidade de Aalst, na Bélgica, incluiu carros alegóricos com bonecos estereotipados como judeus sobre sacos de dinheiro. Os organizadores rejeitaram o apelo de Israel e da comunidade judaica local para cancelar o uso das alegorias no desfile.
Para quem não é alvo do racismo, parece simples brincadeira. Não à toa, porém, para quem está atento ao histórico de perseguição antissemita, faz acender o alerta a normalização dessa ideia, o recrudescimento do uso dessas caricaturas e o aumento do número de casos de antissemitismo no Brasil e no mundo.
Um preconceito, para ser combatido, deve tornar-se consciente. Para isso, não se pode ignorar o rastro de violência deixado pelo estereótipo da riqueza judaica. É importante entender suas raízes.
Tal percepção foi originada na Idade Média e disseminada entre os cristãos. Em uma época em que judeus eram proibidos de exercer diversas atividades profissionais e não podiam ser proprietários de terra, eles ganhavam a vida se dedicando ao comércio e ao empréstimo de dinheiro a juros —o que, por sua vez, era vetado aos cristãos, por ser considerado um pecado, a usura. Essa relação motivou pogroms e discriminação ao longo de séculos.
Voltando a Larry David, que de fato é judeu, a maior ironia é o fato de ele mesmo —ou ao menos a persona revelada em “Curb Your Enthusiasm”, o show em que interpreta a si mesmo— não se preocupar com o cuidado que as minorias têm com as representações que possam diminuí-las diante da sociedade.
Nos três primeiros episódios já lançados da atual temporada, o comediante, roteirista e ator apresenta a ideia de uma nova série para executivos da Netflix e da Hulu. As reuniões expõem a diversidade desses estúdios, cujos escritórios são habitados por pessoas diversas em relação a gênero, etnia e orientação sexual. Deslocado nesse ambiente, David se choca com a cerimônia de um executivo que afirma ser indelicado perguntar se alguém é judeu. O comediante não vê nenhum problema nisso.
Também não vê problema, nesta ou em outras temporadas, em fazer piada a partir de tabus, como a mobilidade de uma cadeirante ou a saúde de uma pessoa que enfrenta o estágio quatro de um câncer.
Nos estúdios em que diversidade é a regra, David acrescenta uma camada a mais de ironia, não no texto, mas no casting. Apesar de as equipes terem mulheres, gays e imigrantes, é um homem branco que toma as decisões, na Netflix ou na Hulu retratadas por ele.
Uma forma de “Curb Your Enthusiasm” assinalar que, apesar dos nossos esforços em incluir e ouvir as minorias, ainda estamos longe de extirpar os privilégios construídos em cima de preconceitos antiquíssimos, aos quais alguns se referem como inconscientes como forma de fugir à responsabilidade. O antissemitismo e o estereótipo do judeu rico é um deles.