Em 1953, o jornal Estado de S. Paulo criou o Suplemento Feminino, um caderno dedicado exclusivamente a pautas para mulheres, como regras boas maneiras e tendências de moda. Nesta semana, a Folha de S. Paulo lançou Todas, plataforma com conteúdo jornalístico cem por cento voltada para o público feminino. O lançamento foi anunciado como um tipo de avanço, mas em pleno 2023 tem o formato de cercadinho, como se os critérios de noticiabilidade do jornal pudessem ser divididos entre interesse “feminino” e “geral”– esse último, claro, destinado aos homens.
Dei uma olhada no conteúdo: nada sobre o conflito israelo-palestino ou a Guerra da Ucrânia, a alta do dólar, o preço do barril de petróleo, chacinas no rio, rios secos na Amazônia, a convalescência do presidente da república ou uma mísera menção à reprodução da famosa ema do Planalto, que recentemente teve 12 filhotes.
Ao que parece, mulheres não se importam com economia, política doméstica, relações internacionais e ninhadas de aves de grande porte. Mas com o que elas se preocupam? Em destaque, no centro da tela, está a dica: uma matéria sobre a Semana de Moda de Paris. Ao lado esquerdo, os títulos das colunas, ajudam a responder: ” Empreender como mulher é um desafio”; “A verdade incômoda de envelhecer na internet” e “O que é ‘dar certo’ no amor?”.
Homens se relacionam, envelhecem e empreendem. Se a sociedade estabelece parâmetros e favorece comportamentos que tornam o amor, a velhice, o mercado de trabalho e – quase – tudo mais difícil para as mulheres, não faz sentido que isso seja considerado “assunto feminino”. Homens deveriam estar entre o público-alvo de textos sobre temas cuja leitura e repercussão são fundamentais para toda a sociedade. Quando é que veremos matérias ou colunas sobre o cuidado com idosos ou a rotina dos filhos ser considerada do interesse do público masculino?
A mesma folha de S. Paulo tem outros conteúdos segmentados: a Folhinha,voltada para as crianças, e o Folha Teen, criado para o público adolescente. A criação da plataforma Todas coloca as mulheres, digamos assim, como parte de “leitores especiais” do jornal, ao lado daqueles que ainda não têm o córtex pré-frontal completamente formado. É ofensivo.
Revistas, desde seu nascimento, tendem a ser segmentadas. Com a popularização da internet e, ainda mais, das redes sociais, a divisão das revistas que sobreviveram e dos sites que surgiram se aprofundou em busca por públicos-alvos em nichos cada vez mais específicos. Jornais impressos e suas versões online, por outro lado, continuam a ser a arena do debate público e da informação aprofundada, sem distinção – ainda mais quando revistas semanais perderam leitores e relevância. A decisão editorial de mirar em “conteúdo para mulher” passa, ainda que não intencionalmente emesmo que com ótimas jornalistas e colunistas envolvidas no processo, o recado de que “it’s a man’s man’s man’s worllllld”, e nem tão cedo vai deixar de ser, porque ainda cabemos num cercadinho.
Para ser honesta, a home da plataforma Todas, quando conferi as manchetes, além de uma coluna sobre o amor e uma matéria sobre moda, havia um perfil da ativista iraniana Narges Mohammadi,i anunciada como ganhadora do Nobel da Paz, nesta sexta-feira (06). Presa atualmente – e pela décima primeira vez – em Teerã, Narges é acusada de “espalhar propaganda contra o Estado”. Na verdade, porém, ela perdeu a liberdade por lutar por equidade de gêneros.
Em diferentes lugares, o machismo encontra sempre seus meios de atrasar nossa busca por ser consideradas apenas gente, tanto quanto os homens. Nem sempre isso se dá da forma violenta dos aiatolás. O atraso pode vir até na confusa forma de um elogio. Ser qualquer coisa é premissa masculina, e a nós é destinado o adjetivo feminino,mpara deixar claro do que se trata. Não bastasse tudo, pensar que existe jornalismo e jornalismo feminino é difícil de engolir.
Pesquisa de maio deste ano, divulgada pelo do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA/UERJ), mostrou que homens são 55% do corpo editorial da Folha, enquanto mulheres somam 35%. A Folha de S. Paulo – como qualquer outro jornal – seria mais útil às mulheres se equilibrasse seu quadro de funcionários, especialmente nos cargos mais altos, de modo que mulheres tenham representação semelhante à sua porcentagem na sociedade.