Textão

Woody Allen e o Tribunal da Inquisição 2.0

07/04/2020

No último mês de março, o produtor de Hollywoody Harvey Weinsten foi considerado culpado por má conduta sexual. Mais de 80 mulheres se manifestaram contra ele, antes de o tribunal condená-lo por dois de cinco casos apresentados na corte. Larry Nassar, ex-médico da seleção americana de ginástica, foi condenado por abuso sexual, em 2018, depois de 156 mulheres afirmarem ter sido vítimas dele. Em 1992, Woody Allen foi acusado de abusar da filha adotiva de 7 anos. Duas investigações concluíram que não houve pedofilia. Nunca, nem antes e nem depois, uma outra mulher ou homem, menor ou maior, uma atriz famosa, uma figurante, uma produtora, uma moça do cafezinho foi ao tribunal contra ele, alegando algo parecido.

Um pedófilo pontual seria Woody Allen, caso tivesse sido condenado. E bota pontual nisso. Até aquele começo da década de 1990, o cineasta namorava a atriz Mia Farrow, uma mulher com mais de 10 (dez) filhos, entre adotivos e biológicos. Morando em casas separadas, ele a visitava constantemente e conviveu com os filhos de diferentes idades de Mia, sem que a namorada ou uma das empregadas da casa tivessem suspeitando de que ele alguma vez abusou das crianças e adolescentes. Exceto aquela vez em 1992. Entre os irmãos, Dylan e Moses eram mais próximos do cineasta, que decidiu se tornar pai adotivo dos dois, num acordo com Mia. O casal também teve um filho biológico, Ronan Farrow, nascido em 1987.

Claro, se um homem é um predador sexual, deve ser julgado e condenado, não importa o número de abusos e o de vítimas. Longe de ser uma psicóloga forense (ou psicóloga sem ser forense), meu estranhamento quanto à falta de padrão na conduta de Woody Allen também não importa. Mas importa, sim, a época em que a única acusação de pedofilia foi feita.

No fim do ano anterior à acusação, Woody Allen começou a namorar Soon Yi, uma dos mais de dez filhos de Mia, 35 anos mais jovem que ele. Os dois continuam juntos e têm um casamento de mais de 25 anos. Son Yi não era filha, nem enteada de Woody Allen e, embora seja uma relação um tanto quanto fora do comum, não há crime envolvido. Ela já tinha 22 anos, quando os dois iniciaram o relacionamento.

Dá para entender completamente que Mia Farrow tenha ficado revoltada com a dupla traição. Mas será que ela inventou a história da pedofilia, como vingança? O laudo de investigadores de Yale, segundo consta no livro de memórias de Woody Allen (“A Propos of Nothing”) levantou a dúvida. Espero que algum jornalista que esteja trabalhando em veículos da imprensa no momento abandone um pouco a cobertura da pandemia do coronavírus para checar isso e duvido que Woody Allen seria tão ingênuo a ponto de descrever uma mentira assim no livro.

Independemente de os investigadores de Yale terem ou não imaginado que tudo pode ter sido uma invenção de Mia em busca de vingança, nada impede qualquer um com mínimo de senso de justiça ter lá suas dúvidas sobre essa história toda. Como todo mundo, Woody Allen é inocente, até que se prove o contrário. E não foi provado o contrário, em 1992. O que mais nós, que não somos da família, nem psicólogos forenses, nem profissionais envolvidos no caso podemos querer? A presunção de inocência é um princípio respeitado pela Justiça (essa com J maiúsculo, que separa a civilização da barbárie). As investigações e a palavra final do juíz é o suficiente para que um homem não seja preso e siga com sua vida, mas para a internet é pouco.

Em 2018, quando Larry Nassar foi condenado, ganhava cada vez mais popularidade o movimento #MeToo, formado por mulheres ligadas à indústria cinematográfica americana que decidiram vir a público e denunciar casos de má conduta sexual. O mais poderoso entre os acusados, Harvey Weinsten foi condenado dois anos depois. O momentum levou Dylan Farrow a revisitar o assunto da pedofiia e a acusar atrizes de Hollywood de hipocrisia, pois denunciavam predadores sexuais, ao mesmo tempo em que trabalhavam com um deles, Woody Allen. Foi assim que a história, que já tinha encontrado uma conclusão nos tribunais, voltou à tona.

O #MeToo, um movimento legítimo e necessário, provavelmente não poderia emergir num mundo sem internet, graças a qual a mobilização e a cobrança pública são mais potentes do que nunca. Ao mesmo tempo, também é no ambiente virtual que a busca por justiça pode facilmente se transformar em injustiça. O clamor popular na internet, a sanha por sangue e pelo corpo dos hereges queimando em praça pública parece ser saído das entranhas da Idade Média. Existe um ponto da mobilização que impede que os abusadores ricos, poderosos, homens, brancos e héteros saiam impunes.

A cobrança por um julgamento pode e deve ser feita nas plataformas online, uma extensão da esfera pública de nossos dias. Contudo, o local de decidir se houve um crime e qual é a punição continua sendo o tribunal. A linha que torna movimentos legítimos em barbaridade é quando os ritos organizados para acusar e julgar alguém, incluindo o direito à defesa, passam a ser desrespeitados. Há parte dos sedentos por justiça que não se contentam com as estruturas criadas para castigar e reeducar criminosos, ou para inocentar aqueles que não cometeram crimes. Na internet, a multidão ignora o sistema legal e, em nome do politicamente correto, prega o linchamento.

Foi a justiça da internet que substituiu a presunção da inocência por outro princípio: “a vítima [qualquer pessoa que se diga vítima] sempre tem razão”. Ou outra máxima ainda intocável: “não se pode desconfiar da palavra da mulher”. Por mais feminista que eu seja — e realmente sou — fica difícil concordar com essa. É verdade que mulheres são mais vulneráveis socialmente (são mais assassinadas por homens, são governadas e chefiadas por homens e têm seu trabalho desvalorizado em relação ao deles, para citar só três exemplos). Juntando essa realidade ao fato de crimes sexuais serem cometidos, em sua maioria, por homens contra mulheres e em circunstâncias difíceis de serem provadas, em locais reservados e sem testemunhas, faz sentido dar atenção e crédito extra às queixas de supostas vítimas. É essa a pressão que deve ser feita para que o sistema legal leve em consideração as assimetrias de poder existentes entre os envolvidos em cada caso e investigue a fundo as denúncias, levando em consideração cada peça, seu contexto. Simplesmente acreditar que nunca haverá um falso testemunho dado por uma mulher ou uma pessoa que minta ter sido vítima de violência suxual não é uma reivindicação compatível com a ideia de que todos são (ou deveriam ser) iguais diante da lei.

Voltando à palavra da vítima. Mia Farrow foi acusada por Moses, filho adotivo dela e de Woody Allen, de ser violentamente abusiva com ele e com seus irmãos, física e psicologicamente. Mia teria incutido na cabeça de Dylan a condição de vítima; a menina tinha 7 anos na época que a acusação de pedofilia foi feita. Como mãe, ela fazia distinção entre os adotados e os biológicos. Atormentava a todos, mas especialmente os filhos que não teve naturalmente. Dois deles se mataram, segundo Moses, como consequência da péssima condição em que viveram. Quem confirma a história é Soon Yi (ela mesma, casa com Woody Allen). Soon é vítima e mulher, portanto, as cartas ficam embaralhadas. Também eram mulheres a empregada e a babá de Mia Farrow que testemunharam a favor de Woody Allen.

Quanto à veracidade absoluta da palavra de uma mulher: Mia Farrow testemunhou a favor de outro cineasta acusado de pedofilia, Roman Polanski. Porém, mais tarde, o próprio Polanski admitiu que as acusações enfrentadas por ele eram legítimas. A menina com quem ele teve relações sexuais, enquanto ela era menor, Samantha Geimer, afirmou perdoar Polanski. Porém, ela não perdoou Mia.

A situação na qual Woody Allen está envolvido é complexa — um caso de polícia e de família — e complexidade é tudo com o que a maioria não quer lidar, numa rede social, enquanto opina sobre a vida alheia e profere veredictos capazes de destruir carreiras e reputações. A solução mais popular é nunca mais assistir um filme de Woody Allen, porque alguém acha, porque Dylan chorou na frente das câmeras, porque aquela atriz que fez “Juno” disse que se arrependeu de ter trabalhado com ele. Mas e a Diane Keaton, que não só trabalhou, mas viveu com Woody Allen e o defende? E todas as suas ex-mulheres, que se posicionaram ao seu lado? E o fato de ele não ter sido condenado em 1992?

Por pouco as memórias de Woody Allen, um artista de 84, dos mais produtivos, não pôde ser lançada, porque o Tribunal do Santo Ofício 2.0 quis assim. Houve greve dos funcionários da editora que publicaria o título. Houve artigos nos jornais, fogo e ranger de dentes. Porém, numa reviravolta dessas de cinema, o livro saiu e, nele, li em detalhes a defesa de Woody Allen sobre si mesmo, aquela de que ninguém quer saber. Desde que inventaram as redes sociais, posto, uma vez ou outra, algo relacionado a Woody Allen, uma frase, uma cena, porque sou realmente apaixonada por sua obra. De uns tempos para cá, sempre que posto, alguém me pergunta algo sobre a acusação de pedofila. Não que minha opinião seja importante (quem dera fosse), mas agora eu tenho uma resposta completa para dar, sempre que isso acontecer de novo.

Uma amiga minha diz que eu não me daria ao trabalho de comentar, responder, explicar, se não fosse o Woody Allen. Realmente, não teria escrito todos estes parágrafos, nem lido outras dezenas de artigos sobre o assunto da queixa de Mia Farrow contra ele, se eu não achasse aquele monólogo de “Manhattan” sobre o que faz a vida valer a pena a coisa mais linda do mundo. Mas o que pesa mais no meu julgamento não é ser ou não ser fã, mas ter parado para ler e pensar um pouco sobre o assunto e por um minuto que seja perguntar: “Mas e se um homem for acusado de pedofilia sem ter feito isso, não seria uma grande injustiça”? Na busca por um mundo mais justo, vale a pena atropelar uma só pessoa inocente que seja?

Quando a Juíza Rosemarie Aquilina, da Corte do Condado de Ingham, em Michigan, proferiu a sentença do médico pedófilo Larry Nassar, disse que era uma honra sentenciá-lo, pois em qualquer lugar por onde ele andasse, “a destruição ocorreria para os mais vulneráveis”. Woody Allen está andando por aí, entre Europa e Estado Unidos, filmando, tocando e escrevendo até hoje, sem que nenhum outro vulnerável de que tenhamos notícia tenha sido ferido. Ao contrário, ele e Soon Yi adotaram duas bebês, uma americana e uma coreana, e suas filhas hoje já estão na universidade. Antes de conceder a guarda a pais adotivos, autoridades americanas investigaram a vida do casal. Foi o suficiente para que fossem considerados aptos. Mas investigação nenhuma é suficiente para quem só quer ver alguém arder na fogueira.

Comments

comments

Postagens relacionadas

Comments

Sabrina Abreu