breves prosas poéticas

O ano em que salvei uma vida (talvez)

21/12/2020

Teoricamente, sou capaz de fazer a manobra de Heimlich. Mas se, Deus me livre, alguém se engasgar perto de mim, não sei se conseguiria salvar a vida da pessoa. É que em momentos de pressão, nem sempre minhas mãos respondem aos meus comandos. Também era assim nos jogos de queimada ou handball, a bola vinha chegando, chegando … e nada de meu corpo reagir adequadamente. Eu era a pior jogadora do colégio. Foi só na escrita que finalmente minhas mãos se reconciliaram com a rapidez dos meus pensamentos, o que resultou em letras feias e dias felizes. Quando a quarentena começou, foi a primeira vez em muito tempo que me senti mal por minhas habilidades não serem capazes de salvar uma pessoa. Outros profissionais eram essenciais: os médicos e enfermeiros, motoristas de ambulância, de ônibus, de Uber e de caminhão, caixas de supermercado, manobristas de empilhadeiras, farmacêuticos, garis, guardas de trânsito.

Não sendo uma profissional essencial e sem saber responder onde fica o fígado e para que serve o baço, tudo o que pude fazer foi lavar os pacotes de batata palha, desinfetar as maçanetas e solas de sapato, lavar as mãos, não entrar nunca mais no metrô durante dez meses, evitar sair de casa, sair de casa usando máscara. Durante a pandemia, testei duas vezes para saber se tinha covid; foram medidas obrigatórias para trabalhos específicos. Deu negativo nas duas. Eu sei que muita gente, mesmo tomando todo o cuidado, contrai esse vírus horroroso. Mas eu, graças a Deus e graças às dicas da ciência sobre como me prevenir, não peguei. Isso me consola, neste fim de ano sem festas, neste verão em que tive que desistir de viajar, neste ano em que eu, mesmo com o afobamento que dificultaria executar de modo eficiente a manobra de Heimlich, sem saber quase nada sobre infectologia, ou anatomia, sendo uma motorista que jamais se qualificaria para guiar uma ambulância e tendo passado os últimos 300 dias escrevendo, lendo, cozinhando, regando minhas duas (02) plantas e assistindo telejornal, neste ano, quem diria, eu talvez eu até tenha conseguido salvar uma vida, apesar de tudo que não sei e do pouco que eu podia.

 

 

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Sabrina Abreu